Como um invisível, caminho pela rua. As pessoas
parecem não me ver. Sou o nada perdido na multidão apressada. Vozes nervosas, o
motor dos carros, gritaria de vendedores e eu, inútil ao mundo, em minha
caminhada insignificante. Quem olha pelo velho que se arrasta no movimento
rápido de um fluxo insano? Ninguém se apieda dos difíceis passos lentos,
reclamam da lentidão na velocidade de um tempo egoísta.
Estou só. Não, não. Sou só. Minha esposa morreu
há alguns anos. A minha amada me deixou para trás na viagem ao desconhecido.
Deixou-me ou fui eu quem me atrasei para o trem? Quando cheguei à estação ele
já havia partido, levando meu conforto em seus vagões empoeirados e frios.
Meus filhos já não se lembram de mim, a não ser,
é claro, quando precisam do meu pouco dinheiro. Três belos rapazes. Varões do
meu orgulho ferido. O mais velho advogado, o meu doutor de terno e gravata,
sempre apressado com a valise de couro italiana na mão. Tenho pendurado na sala
o seu retrato imponente, que observo quando sento na poltrona e assisto ao meu
passado nas lembranças. O do meio é engenheiro não sei de quê, a memória me
falha. Mas sei que é um homem importante. Trabalha numa empresa dessas que
rodam o mundo. Já o caçula, criatura mimada por minha mulher, é um perdido na
vida. Falei para Dolores que esse menino daria problemas. Meteu-se a ser
artista. Vagabundo, isso sim. Meus filhos são traças a devorar minhas páginas
amareladas, sem se preocuparem com o texto escrito nas linhas duras da minha
vida.
A velhice é a morte sem estar morto. As rugas no
rosto já não são sinal de respeito, geram zombaria e desprezo. Ninguém me vê, e
eu continuo andando lentamente pela rua cheia de pernas agitadas.
Faz muito calor. Meu terno de brim desgastado me
esquenta o corpo como se eu estivesse numa estufa. O chapéu protege a
cabeça, mas me ferve o couro. Fico tonto. Houve um tempo em que os homens
de respeito se vestiam bem. Éramos alinhados, impecáveis. Dos sapatos ao
chapéu, desfilávamos impecáveis pela rua, cheios de vaidade. Os jovens nos
olhavam admirados, as mocinhas se riam. Dávamos bons dias, boas tardes quando
topávamos com os outros nas caminhadas. Eu tinha amigos. Mas eles também
embarcaram no trem que me levou Dolores. Os jovens hoje riem de mim quando
passam com seus bonés da moda, jeans e camisetas esportivas. As mocinhas andam
quase nuas, exibindo seus corpos sem nenhuma vergonha. Uma afronta! Por que
fiquei para ver a decadência moral do mundo?
Sou um relógio quebrado, parei no tempo.
Lá vem uma mocinha sorridente. Ela caminha com
pressa, sem olhar para os lados. Atrás dela, um delinquente lhe arranca a bolsa
e corre. Ninguém faz nada. Todos fingem não ver que o rapaz a jogou no chão e
corre com seus pertences. Brado a bengala no ar. Quero acertá-lo em cheio, mas
ele me joga no chão, quando passa por mim. Ninguém faz nada. A mocinha está
chorando. As pessoas olham para ela, mas nada dizem. As pessoas olham para mim
e riem.
Tento me erguer. As costas doem, as pernas doem, os ossos doem. Com lentidão me
arquejo. As mãos espalmadas no chão num esforço brutal para me pôr de pé. A
bengala me ajuda, as pessoas não. Onde este mundo vai parar? No meu tempo, o
marginal estaria preso. Não o deixariam fugir com a bolsa da mocinha
sorridente. Ela estaria amparada pelos homens de bem. Hoje não. Hoje a mocinha
sabe que perdeu tudo o que tinha, ela sabe que a impunidade é maior do que a
dignidade.
Alguém poderia pegar o meu chapéu caído ao meu lado. Alguém poderia ajudar o
velho que se arrasta a recompor-se, mas ninguém ajuda. Com dificuldade a
bengala, fiel amiga, o ergue no ar. Cubro novamente o couro sem pelos. Um dia
eu tive muito cabelo. Era vaidoso. Penteava a cabeleira com satisfação. Mas os
fios enfraqueceram. Perderam a cor e caíram tão rápido que nem percebi, ou não
tive tempo para perceber. Sou da época em que o homem trabalhava para prover o
sustento da família. Essa história de mulher trabalhar não era bem vista. Meus
filhos permitem que suas esposas trabalhem. Vejam só que disparate! Esquecem a
educação que lhes dei. A mesma que meu pai me dera. Tenho vergonha de dizer que
meu caçula come porque sua esposa põe a comida na mesa. Meu próprio filho...
Que decepção me destes, João Francisco!
Retomo os passos. Que sofreguidão é minha
caminhada. Queria ver o mar, mas a praia é, para mim, tão distante quanto outro
planeta. Eu frequentava a praia nos finais de semana. Vestia meu calção e
nadava como um peixe. As crianças brincavam na areia, enquanto Dolores as
vigiava com zelo. O meu filho do meio fazia castelos na areia, mas as ondas os
derrubavam com voracidade. Ele chorava. Quando fez a primeira casa, eu disse
para tomar cuidado com as ondas. Ele ria. Pedro Paulo constroi casas. É
engenheiro de alguma coisa. Trabalha muito, o coitado. Vive rodando o mundo,
enquanto a mulher trabalha num banco federal. Ganham muito dinheiro, mas não me
visitam faz anos. É porque ele trabalha muito e está sempre viajando.
Como me doem as pernas! Queria me sentar na
antiga confeitaria da esquina e beber alguma coisa. Mas a confeitaria não
existe mais, como não existe mais o Pacheco. Todos os dias eu me sentava à mesa
do canto, sempre a mesma, e pedia ao Pacheco um café preto e uma fatia de bolo,
enquanto observava a manhã nascer. Mas a confeitaria não existe mais. Fechou as
portas com a morte do velho amigo. O filho, o Pachequinho, vendeu o prédio para
uma dessas lojas que oferecem de tudo.
Quando Dolores se foi, Pedro Paulo quis vender minha casa também. Falou que era
muito grande para um velho como eu viver sozinho. O pai vai ter lembranças
ruins, disse para o irmão mais velho. Eu não queria sair da minha casa, mas o
Luís Fernando me disse que seria melhor vender antes que desvalorizasse a
propriedade. Se o Luís Fernando disse que seria melhor, então era verdade. Meu
mais velho não conta mentiras. Uma vez, quando era garoto, disse que estava na escola,
mas eu o peguei com um bando de desajuizados batendo perna na praça. Levou uma
surra na frente dos amigos, da namorada. Apanhou tanto que nunca mais mentiu.
Por isso confiei no meu filho. Assinei o tal contrato de venda da casa de olhos
fechados, mesmo sabendo que entre aquelas paredes antigas ficariam as
lembranças da minha Dolores.
No apartamento que moro de aluguel, as
coisas se amontoam empoeiradas. O Luís Fernando me disse que hoje em dia
ninguém mais compra casas. É perda de tempo, pai. Alugar é mais fácil,
explicava-me com paciência. Sinto falta da minha casa, do jardim da Dolores, do
cheiro das flores, mas me acostumei com a falta de cor do apartamento. A
paisagem da janela do quinto andar pelo menos é bonita. Posso ver a praia, as
pessoas, o Cristo. Mas é tudo tão distante, tão triste, que prefiro sentar na
poltrona velha e olhar para os retratos que o porteiro pendurou na parede da
sala, porque meus filhos não puderam me ajudar. No começo tive muito medo de
morar sozinho naquele lugar estranho, mais medo ainda de entrar no elevador.
Aquela caixa de ferro me faz pensar na morte. É o caixão metálico onde me
divirto, subindo e descendo os andares até que o Antenor, o porteiro que me
pendurou as fotografias, muito gentil, aconselha-me a descansar. Ele se
preocupa muito comigo. Deve ter a idade do Pedro Paulo. Mas coitado, não teve a
mesma sorte. Passa o dia inteiro sentado na portaria abrindo o portão de ferro
da entrada do edifício. Não ganha bem, por isso sempre lhe dou um agrado quando
recebo o dinheiro da aposentadoria. A economia do país mudou muito. Eu pensei
que o meu ordenado seria melhor, mas o Luís Fernando me disse que o país está
enfrentando uma crise financeira muito grave. Ele cuida das minhas finanças e
todo mês, direitinho, me entrega o dinheiro que ele recebe no banco,
descontando o aluguel e as outras despesas da casa. Meu filho é muito
responsável.
Não consigo entender por que o João Francisco
saiu tão diferente. Deve ter sido por causa dos mimos da Dolores. Vá lá, um artista!
Vagabundo sustentado pela mulher. Gosta mesmo é de aparecer nos jornais. Sempre
que ele vem me perturbar com essa história de ir morar com ele e a mulher me
traz um jornal com uma foto dele e de sua arte. Tanto esforço para educar as
crianças, e o infeliz perde tempo pintando porcarias que não consigo entender.
Faço arte contemporânea, pai; ele diz quando reclamo da sua vida. Mas me irrito
mesmo quando fala mal do Luís Fernando. Vejam só, dizer que o meu mais velho
rouba o meu dinheiro! É um desaforado, esse menino. Até parece que o Luís
Fernando iria me roubar. O João Francisco e aquela mulherzinha esnobe com quem
ele se casou é que querem meu dinheiro. Eu sei que esse negócio de arte não
enche a barriga de ninguém, por isso eles querem me levar tudo. Quer que eu vá
morar com ele para pôr aquelas mãos sujas de tintas no que é meu. Mas eu não
vou. Ele é que vá procurar um emprego de homem, como o do irmão.
O Luís Fernando não levou o meu pagamento neste
mês. Mês passado também. Coitado, deve estar envolto a processos no escritório
e ainda se meteu a entrar na política. Vai ser deputado! Faço questão de votar
no ano que vem, mesmo não gostando de política. Mas essa história me aborrece
um pouco. Ele estava tão magro quando deixou o dinheiro com o Antenor. Nem
falou comigo. Quando eu o vi, já estava do lado de fora do portão. Apressado
como sempre.
O aluguel está atrasado. O síndico bateu à minha
porta ontem para cobrar o pagamento. João Francisco insistiu para que eu fosse
morar com ele, mas eu não quero nada daquele ingrato. Como ele pode dizer que o
irmão mais velho está me fazendo de bobo! Desrespeito. Ninguém pode manchar a
imagem da família.
Minhas pernas estão queimando. O edifício onde o Luís Fernando trabalha é
enorme. Subir e descer os andares deve demorar muito. Mas o porteiro não me
deixa em paz. Eu entro no elevador e há um homem sentado num banco que me
pergunta para qual andar eu vou. Digo que é para o décimo quinto. Ele aperta o
botão. A caixa metálica sobe, sinto um frio na barriga. A porta se abre. Ele me
manda sair. Queria subir ao último andar e descer ao térreo antes de saltar do
elevador, mas o homem me lança um olhar intimidador. Atravesso o corredor
vazio. Meus sapatos ecoam pelas paredes. Vejo a sala do Luís Fernando e me
encho de orgulho. Entro devagar.
A secretária olha para mim com desdém. Eu não sou
qualquer um. Digo que quero falar com meu filho, mas ela me responde que ele
não pode me atender sem hora marcada. O descaso com os velhos. Vou mandar que
Luís Fernando a demita. Ela não perde por esperar. Insisto para entrar, mas ela
não deixa. Ergo minha bengala, furioso. Não sei de onde surge um segurança que
me põe para fora da sala e me acompanha ao elevador. Tento argumentar, mas ele
me enxota como seu eu fosse um desocupado.
Estou na rua novamente. Meus passos são lentos na
velocidade do mundo. As pessoas me esbarram como se eu fosse invisível. Os
jovens de bonés e calça jeans riem do meu terno desgastado e do meu chapéu.
Quero voltar para casa, para minha Dolores, mas me lembro de que a casa não
existe, de que Dolores também não. São lembranças distantes na vida amarga. Meus
passos são vagarosos. As pernas fraquejam. Estou tonto. Preciso de um táxi.
Ergo a mão, fazendo sinal, mas me lembro a tempo de que a carteira está vazia.
Meus remédios para a pressão acabaram. Minha cabeça dói, mas não sei se é por
causa do sol ou da hipertensão. Aquela secretária vai pagar caro pelo que fez.
Quando o Luis Fernando vier me ver, vou contar tudo para ele. Ela vai para a
rua na mesma hora.
Pedro Paulo está na França. Ou na Itália? Já não me recordo. Ele foi para a
Europa logo depois que venderam minha casa. Mandou-me um postal ano passado. A
cabeça é falha, era a Torre Eiffel ou a Torre de Pisa? De fato era uma torre
europeia. Se ele estivesse aqui iria fazer aquela estúpida funcionária pedir
desculpas de joelho, porque Pedro Paulo quando está irritado assustaria até
Fidel Castro. Mas ele está na Europa. Quando voltar de lá não valerá a pena
contar para ele. Queria só ver meus netos. A última vez que os vi ainda eram
muito pequenos. Sou um avô desnaturado, não me lembro dos nomes. São dois
meninos... Ou serão duas meninas?
Continuo o meu caminho. Vejo a
estação de trem. Aperto o passo, ignorando minhas dores. Meto a mão no
bolso. Há um bilhete para o próximo trem. Confiro o horário. Olho para o
relógio. Se me apressar não o perco desta vez.
O fiscal está à porta do vagão recolhendo os bilhetes. Afoito, entrego o meu.
Minhas pernas não se aguentam. Sento numa poltrona. Há uma bela mulher ao meu
lado. Ela usa um vestido parecido com o que Dolores usou quando nos conhecemos.
O seu chapéu é igual ao de Dolores. Ela sorri para mim com felicidade. É a
minha Dolores sentada ao meu lado.
Demoraste tanto a vir, José; ela me diz com sua
voz suave. Está nova, sem rugas, sem o peso do tempo, linda como antes. Eu
também me remoço. Minhas dores não mais existem. O trem apita fortemente. Está
de saída. Desculpa-me, querida, perdi a hora; digo feliz pelo reencontro
tardio. O vagão se movimenta nos trilhos. Seguro as mãos da minha mulher e
finalmente desenho um sorriso.
Alberto da Cruz